Contar minhas lembranças, principalmente do meu tempo de criança, sempre foi e é muito emocionante e até um desafio pro meu coração e pra minha alma. Por isso, cada vez que me defronto com minhas eternas e sublimes lembranças, fico a imaginar o quanto eu sofri, o quanto foi difícil minha vida, meu tempo e minha história.
Nasci na Itália em 1889. Na época aquele país era dividido em diversas partes, principalmente no que se refere às condições econômicas, pois haviam partes onde moravam os ricos e outras partes os pobres, dividindo-se por classes sociais e econômicas.
Minha família era de 9 irmãos; 4 mulheres e 5 homens. Lembro que nossa vida na Itália era muito difícil, pois trabalhávamos para os patrões em troca de comida e algumas roupas. Eu era a quinta filha, segunda mulher. Meus pais, através do governo italiano, recebeu uma proposta que, na época de 1898 era praticamente irrecusável, pois o governo brasileiro estaria oferecendo terras para quem quisesse morar no Brasil e, como éramos muito pobres e trabalhávamos de empregados, sendo praticamente escravizados pelos patrões italianos, meus pais não pensaram muito e nem tiveram outras alternativas a não ser aceitar a imigração para este novo país, que diziam ser farto de terras, de matas, de rios, de flora e fauna, além de ter ótimas condições para o plantio e colheita de alimentos.
Numa bela tarde de primavera, ainda lembro que, ao cair do sol, meus pais reuniram a família, na sua grande maioria crianças pequenas e sem entender direito o que era migração para o Brasil, país desconhecido até então, e avisaram que no outro dia, bem cedo, iríamos recolher o pouco que tínhamos e fazer uma viagem de navio, para viver em outro lugar, muito distante mas que pudessem ser mais livres e ter melhores condições de vida.
Sei que naquela noite fomos dormir muito ansiosos e ansiosas, pois no amanhecer do outro dia iríamos viajar de navio para um outro país e essa idéia nos deixou um pouco confusos, um pouco esperançosos e até com medo do que poderia acontecer com nossa família.
Mas ao raiar do dia, nossos pais nos chamaram e levantamos logo. Parecia que não era conosco o que estava prestes a acontecer com a família, pois iríamos para uma terra distante, desconhecida e iríamos viajar de navio, o que jamais imaginávamos fazer, até pela nossa condição econômica e social em que estávamos submetidos.
Lembro que nesta época eu tinha 9 anos de idade, por isso lembro-me de muitos detalhes de tudo o que aconteceu com nossa família e nossa viagem até este tal de Brasil, terra desconhecida por todos.
Tomamos café juntos, a família, talvez fosse a última vez que esse ritual poderia acontecer, principalmente na Itália. Comemos de tudo, enchemos a barriga com a melhor comida que tínhamos, principalmente comida que poderia nos dar sustentação e nos deixar um pouco mais fortes. Comemos pão, queijo, lingüiça e leite. O que sobrou de comida na mesa, meu pai colocou num cesto e adicionamos à (pequena) mudança. Além disso, levamos alguns alimentos como feijão, batatas, farinha, arroz e milho, além de algumas frutas que havíamos apanhado no pomar do patrão no dia anterior.
Nós tínhamos, em média, apenas dois pares de roupas para cada pessoa da família. Calçados não existiam. Por isso, foi até fácil arrumar as coisas para a viagem, pois não tinha muito o que carregar, até em função da situação de miserabilidade que passávamos na Itália.
Lembro-me que às nove horas da manhã, num dia ensolarado, saímos de casa de carroça puxada por bois, e nos dirigimos até o local designado pelo governo italiano, pois nos apanharia e nos levaria de trem para o porto do qual embarcaríamos no navio com destino ao Brasil, destino tão desconhecido por todos e incerto para suas esperanças de vida.
Nos despedimos dos poucos amigos que ficaram. Sei que houveram muitas lágrimas. Muitas promessas, mas poucos abraços, pois as pessoas eram mais “frias” do que o nosso tempo atual.
Ao embarcar no navio, senti algo muito estranho, diferente de tudo o que jamais havia sentido. Comecei a tremer, a lembrar do que ficou, a lembrar das poucas mas sinceras amizades que talvez jamais tornaria a ver.
Durante a viagem, que durou 45 dias em alto mar, aconteceram muitos fatos, que até são de conhecimento público. Muitas pessoas morreram e foram jogadas no mar. Muitas adoeceram. Muitas pessoas ficaram praticamente loucas e houve muita fome entre elas. Passávamos a maior parte do tempo cantando e jogando algum jogo para nos distrair. Sofremos muito frio, vento, calor. Eu ajudava minha mãe a cuidar dos irmãos menores. Meu pai e meus irmãos maiores também ajudavam. Felizmente para nossa família tão numerosa e com a maioria dos filhos pequenos, não aconteceu nenhuma tragédia durante a viagem, pois as pessoas privilegiavam estas.
Ao chegar no Brasil, após longos 45 dias de viagem em alto mar, nos deparamos com o desconhecido, com muitas florestas, animais ferozes e pessoas estranhas para todos. Nossa família, juntamente com outras tantas, foi direcionada a se instalar numa região montanhosa, cheia de relevos, tal qual região onde morávamos na Itália. Outras famílias foram direcionadas para outras regiões, distantes, pois jamais tivemos a oportunidade de manter contatos com estas outras famílias.
Na região onde nos instalamos, derrubamos matas e fizemos pequenas casas rudimentares, para que pudéssemos pelo menos nos proteger do imenso frio e dos animais existentes na região.
As famílias se reuniam todas as noites para rezar e para cantar e falar da viagem e das lembranças dos que ficaram na Itália, além de traçar planos, pois todos se ajudavam entre si em todas as tarefas, principalmente da nova agricultura.
Como eu gostava muito de rezar, numa noite em que estavam rezando numa casa vizinha à nossa, tive uma idéia e comentei com as pessoas que ali estavam. Falei que a gente poderia construir um pequeno capitel num local onde todos pudessem se encontrar e rezar. Mas disseram que não havia essa possibilidade, pois ninguém tinha imagens de santos para colocar neste capitel. Foi quando eu, na minha humildade de criança, mostrei uma pequena imagem de São Francisco de Assis, que trouxe comigo e que foi um presente da minha madrinha de batismo antes de deixar a Itália.
Todas as famílias concordaram e em uma semana o capitel estava pronto. Conforme havia prometido, entreguei a imagem de São Francisco de Assis para ser venerada no capitel e, todos os dias, ao anoitecer, eu e meus irmãos íamos até o local para fazer orações e pedidos. O local tornou-se um centro de orações e todas as famílias, sempre que podiam, se reuniam no capitel para rezar e pedir forças para vencer as dificuldades e a solidão através de São Francisco.
Com o passar dos tempos, as coisas começaram a melhorar a cada dia. A agricultura começou a ser produtiva. As pessoas que residiam na região se ajudavam mutuamente e juntos eram apenas uma família, pois os objetivos e as metas de todos eram comuns.
Lembro-me que eu freqüentava o capitel todos os dias e, vendo a imagem de São Francisco de Assis, lembrava de minha amada madrinha que me presenteou com a imagem e que talvez eu jamais poderia vê-la para ao menos dizer o que eu havia feito com o presente.
Uma certa tarde, ao cair do sol, numa das minhas visitas ao capitel, notei que a imagem não estava mais no lugar onde haviam colocado, num altar, perto de uma flor silvestre. Fiquei meio surpresa, sem entender, pois ninguém poderia fazer tal maldade de destruir tão santa imagem de um santo que tanto nos ajudava.
Mesmo assim, ajoelhei-me e comecei a fazer minhas orações com muita fé e, uma surpresa inimaginável aconteceu: minha amada madrinha apareceu em minha frente, com um longo e branco véu, passou sua mão pelo meu rosto e me abraçou. Dos seus olhos eu vi nascer uma lágrima, e esta lágrima escorreu sobre meus cabelos e meu rosto. Não pronunciou nenhuma palavra, apenas senti seu perfume tão doce como frutos do céu. Ela estava linda. Em alguns instantes, desapareceu.
Quando voltei em mim, olhei novamente para o local onde haviam colocado a imagem de São Francisco de Assis dentro do capitel, e para minha grade surpresa, havia a imagem de Nossa Senhora, carregando São Francisco de Assis no seu colo.
Fiquei emocionada e voltei pra casa chorando. Contei o que aconteceu para minha família e a notícia se espalhou por toda a região. Houve peregrinação em visita ao capitel e todos queriam saber do milagre que aconteceu. O capitel se tornou um lugar sagrado, milagroso, pois todos os que iam rezar e pedir graças, eram curados. E hoje, onde havia o capitel, foi construída uma grande igreja, visitada por milhares de romeiros todos os finais de semana em busca de graças e de bênçãos para seus amigos e familiares.
Assim, posso dizer que minhas lembranças foram marcas de uma história de dor, sofrimento, realizações e alegrias, onde pude compreender que a vida vale a pena ser vivida e que devemos ter fé e acreditar que algo superior guia nossos passos e nos conduz sempre para o melhor caminho.
Vanderlei Camini